A Fome Silenciosa da Burocracia: Pernambuco e a Ausência de Políticas Alimentares em Quase 60% dos Municípios
Por Alice Drummond, D-Taimes
Em um país que se orgulha de sua capacidade produtiva e da riqueza de seus recursos, a fome deveria ser uma página virada na história. Contudo, os números recém-divulgados pelo IBGE, no suplemento da Pesquisa de Informações Básicas Municipais 2024, revelam uma realidade dolorosa e, francamente, inaceitável em Pernambuco: 110 das 184 cidades do estado – quase 60% – simplesmente não possuem qualquer lei municipal voltada para garantir a segurança alimentar e nutricional de sua população.
Isso significa, caros leitores, que mais da metade dos municípios pernambucanos deixa ao acaso a garantia de que seus cidadãos mais vulneráveis tenham acesso regular a comida de qualidade. É um descaso flagrante com um direito básico, previsto em lei federal, que deveria ser a espinha dorsal de qualquer gestão pública comprometida com o bem-estar social. A estrutura para combater a fome, ao que tudo indica, é uma prioridade esquecida nas prefeituras.
A análise aprofundada dos dados do IBGE escancara um cenário de profunda desorganização. Apenas 70 municípios possuem alguma legislação sobre segurança alimentar. Dentre eles, pasmem, apenas duas cidades integram essa política a outras secretarias, enquanto 115 mantêm a pauta como um setor subordinado, com pouquíssima autonomia. O mais grave: 61 cidades sequer possuem qualquer estrutura específica para tratar do assunto. Como se combate um incêndio sem bombeiros? A urgência está aí, mas o aparelho estatal para agir, não.
A resposta mais comum a essa lacuna estrutural tem sido a distribuição de cestas básicas. Embora 148 municípios tenham realizado alguma ação em 2023, sendo apenas 37 totalmente inertes, a predominância de cestas básicas é, para o próprio IBGE, um sinal claro de falta de planejamento. Uma ação emergencial, que deveria ser a última alternativa, torna-se a única resposta, revelando a incapacidade de implementar programas mais duradouros e institucionalizados.
Ainda mais preocupante é a ausência de identificação nominal dos municípios nos dados divulgados pelo IBGE. Essa omissão dificulta enormemente a cobrança pública, impedindo que a imprensa, os conselhos de direitos e a sociedade civil exijam responsabilidade das cidades que, por omissão, condenam parte de sua população à insegurança alimentar.
Restaurantes populares, que oferecem refeições a preços simbólicos, são raridades. Apenas quatro municípios pernambucanos contam com esse serviço, atendendo a pouco mais de 2 mil pessoas em um estado com mais de 9 milhões de habitantes. É uma gota no oceano, que demonstra a falta de visão para soluções estruturantes.
A mensagem é clara: a fome em Pernambuco não é apenas uma consequência da pobreza; é, em grande medida, um reflexo da ausência de planejamento e da baixa institucionalização da segurança alimentar na agenda pública. Sem legislação robusta, sem secretarias dedicadas e sem equipes técnicas, o combate à fome fica à mercê da “boa vontade” e das alternâncias políticas, sem a estabilidade de uma política de Estado.
Em contraste com a fragilidade municipal, Pernambuco se destaca no nível estadual, com legislação própria, plano estadual e estrutura administrativa permanente para a segurança alimentar. O estado está à frente da média nacional na esfera estadual. No entanto, o desafio reside em fazer com que essa organização se reflita na ponta, nos municípios, onde a política pública precisa se materializar na vida do cidadão. A lacuna entre o topo e a base é um abismo que precisa ser transposto com urgência e compromisso.
A fome, em sua essência, é um grito por dignidade. E um jornalismo que questiona e aprofunda não pode se calar diante da inação política que perpetua essa tragédia social.
